De acordo com relatório do Fundo das
Nações Unidas para a Infância (Unicef, divulgação em 4/9/14) o Brasil é o
vice-campeão mundial no número de homicídios de jovens de zero a 19 anos: mais
de 11 mil foram assassinados no nosso país em 2012 (ano em que o Brasil teve
quase 57 mil óbitos intencionais). Nesse item só perdemos para Nigéria. Quanto
à taxa por 100 mil habitantes, o Brasil é o 6º colocado (17 para 100 mil). Na
sua frente estão El Salvador (27), Guatemala (22), Venezuela (20), Haiti (19) e
Lesoto (18). No planeta, 95 mil crianças e adolescentes foram assassinados em
2012 (12% no território brasileiro); 90% das mortes globais ocorreram em países
com renda média ou baixa (América Latina, Caribe e África). Causas: alta da
criminalidade, o crescimento da desigualdade, acesso fácil a armas de fogo,
maior consumo de drogas e aumento da população jovem; o jovem negro tem três
vezes mais chance de ser morto que um branco.
Por que somos
como somos? O Estado brasileiro (imperial), criado em 1822, nasceu
geneticamente contaminado, posto que reprodutor do totalitarismo e absolutismo
colonial, guiado pela coerção dos excluídos e segregados do Estado de direito,
que permitia e sempre permitiu o genocídio herdado da metrópole parasita e
sanguinária, criadora de uma filosofia e de uma máquina mortífera até hoje em
pleno vigor no Brasil (e, a rigor, em toda a América Latina).
Não é por
acaso que o Brasil é o 12º país mais violento do planeta (29 assassinatos para
cada 100 mil pessoas) e vice-campeão mundial (em números absolutos) na
violência contra os jovens (sobretudo negros e pardos). Há uma verdade
histórica que parece incontestável: não se implanta um país violento e corrupto
da noite para o dia; não se constrói um país subdesenvolvido (composto em quase
sua totalidade - ¾ da população – de analfabetos funcionais) com uma só
canetada. Mesmo depois da independência, os donos do poder (sectários do
parasitismo e da malevolência) não rechaçaram a “normalidade” da escravidão e
da servidão, que acabou justificada pela teoria de que o crescimento econômico
do país (sempre do país, nunca dos donos do poder) dependia do parasitismo
fulcrado no trabalho escravo.
Foi dessa
maneira que elaboramos nossa primeira Constituição (1824), que era, ao mesmo
tempo e paroxalmente, liberal e escravocrata. Tratava-se de uma doutrina
nitidamente retrógrada, ultrapassada, espoliadora e sanguessuga, que não
apresentava nenhuma dissonância com o que ocorria na colônia extrativista nem
com o que se passa hoje no nosso país (ainda sob o império do neocolonialismo).
A estrutura do
poder colonial, sob o
mando dos senhores de engenho, tirânico, absolutista e indiscutivelmente
despótico, sofreu um processo de transubstanciação (como diz Foucault) ano
momento em que se converteu em poder imperial (veja Luís Mir, Guerra civil, p. 46), depois em
poder republicano e, desde 1985, em poder da falida e
corroída redemocracia (que ainda retrata a era contemporânea
brasileira, já exaurida e exangue, indicando a carência de uma nova era). Da
sociedade imoral escravocrata e disciplinadora colonial (sobre a transição das
sociedades disciplinares para as de controle veja Foucault, Vigiar e punir) passamos para a
sociedade de controle dos segregados e excluídos, regido pela coerção e o
genocídio, desses que são considerados homo
sacers (veja Agamben), ou
seja, gente inimiga que pode ser destruída (exterminada) impunemente (em regra
impunemente), consoante o diabólico funcionamento da máquina de moer carne e
ossos.
Não existe
solução de continuidade (interrupção) entre o exercício do poder de controle
colonial e imperial. Tampouco desapareceu a lógica e filosofia do genocídio com
a república (1889) ou mesmo com a redemocratização (1985). A relação de todos
os poderes com os marginalizados (negros, índios, brancos pobres etc.) sempre
foi estabelecida sobre as bases da mortífera violência. A mão disciplinadora e
controladora do senhor de engenho é a mesma dos posteriores agentes de
segurança: “quando não anulam a resistência do indivíduo que somente pode
ocupar uma única posição, a de servil e submisso, o abatem como inimigo (como homo sacer), com o máximo de
letalidade imaginável” (Luís Mir, citado, p. 46).
O extermínio
criminoso, ignominioso e massivo dos jovens (especialmente quando a cor da pele
é preta ou parda), em pleno século XXI, nada mais representa que a continuidade
operativa da máquina da escravocracia, devidamente planejada, calibrada e
dominada pelos donos do poder, que controlam não somente os lugares onde os
excluídos devem permanecer senão também o grau de escolaridade e de
desenvolvimento econômico dos quais eles podem desfrutar. “A máquina de
dominação dos senhores de escravos foi absorvida pelo poder imperial [depois
pelo poder republicano e, hoje, pelo poder da redemocracia]: a consequência
disso [até hoje] é que este tem que enfrentar e reprimir um crepitar permanente
de rebeliões e desordens sociais [geradas muitas vezes pela própria
irresignação dos rebelados frente ao exercício totalitário e desigual do poder
de controle dos dominantes], que antes [na colônia] era de competência e custo
dos senhores de escravos” (Luís Mir, citado, p. 47). É nisso que reside a
castração ab initio, por
meio da violência, da (ainda hoje impossível) pluralidade existencial ou mesmo
da pacificação. Se hodiernamente o Brasil é um dos países mais violentos do
planeta, é preciso reconhecer que essa realidade não representa nada mais que
fruto do que sempre plantamos. Quem planta mal, como se sabe, colhe o amargo (a
violência, o genocídio estatal, o extermínio). “Combata fogo com fogo e tudo
que restará serão cinzas” (Abigasil van Buren, americana, colunista). “A
segurança só para alguns é, de fato, a insegurança para todos” (Nelson Mandela,
sul-africano, político).
Nenhum comentário:
Postar um comentário