EDUCAÇÃO
O Brasil sem “escola” tem história e
tem cor
VIA GAZETA DO POVO
Médico Nizan
Pereira pesquisa os mecanismos que levaram negros a serem excluídos do ensino
nos períodos imperial e republicano
Publicado em 13/05/2014 | JOSÉ CARLOS FERNANDES
Entrevista
“Trio
Esperança não é Djalma Santos”
O médico
patologista Nizan Pereira, 65 anos, professor da Universidade Federal do Paraná
e ex-secretário de estado, doutor em Educação pela PUCPR, discorre sobre a
naturalidade com que a exclusão racial passou a ser encarada no Brasil, desde
os tempos do Império. Também fala de cultura e futebol, reflexo do “estado das
coisas”. Confira trechos da entrevista dada à Gazeta do Povo
Nizan por
ele mesmo
“Nunca tive dificuldade por ser negro. Não me sentia diferente. Sempre
fui respeitado. Vim da classe média. Meu pai era ferroviário. E eu tinha essa
altura (risos). Me tomavam por um atleta. Minha mãe, minha irmã e eu pudemos
alugar uma casa no Juvevê, sem problemas, quando aqui chegamos em 1967.”
“Eu era estudante de Medicina e gostava de andar pelos corredores da
universidade. Me detive nos quadros de formatura. Desde os anos 1950, havia
apenas três negros, nenhuma mulher. Professor negro na faculdade de Medicina
tive um, o Lafayette. Na minha turma de 1967, só havia uma pessoa negra, ou que
se assumia negra, eu.”
“Tive poucas situações de enfrentamento de racismo. Sutilmente devo ter
sido alvo. Lembro de estar discutindo na universidade e um cara disse ‘pô,
Black is Black’. Era como chamavam – eu não sabia. Podiam me chamar de Tigre,
de Gorilão, eu tinha alguns apelidos. Os alunos me chamavam de Lothar, o valete
do Mandrake. Não iam me chamar de Leonardo Di Caprio, né. Isso nunca me
incomodou.”
Naturalização
“A naturalização foi um processo de dominação baseado em leis. Nos
tempos de dom Pedro I era assim: todo cidadão brasileiro tinha direito à
educação. E cidadãos eram os portugueses e seus descendentes nascidos no
Brasil. Poderia até haver o direito à liberdade, mas ser escravo livre não dava
direito à educação.”
“A naturalização é quando a gente não pensa mais. Deduz. A própria
escola fez isso – os negros não estavam lá porque não era para estar. E se
estivessem, era exceção. Vemos negro no avião como francês do mesmo modo que
vemos a negra como empregada. Já me confundiram com o bedel em sala de aula. O
que é mais cruel na naturalização? O oprimido aceitar a opressão, a violência
como natural. É ver o outro como naturalmente não fadado ao direito...”
“A pior coisa é quando o dominado faz o discurso da naturalização: vou
por meu filho interno para ver se aprende alguma coisa. Vai para o exército
para aprender a respeitar. Quando o explorado repete cânones do explorador,
tem-se a perfeição.”
Racismo
“Quatrocentos anos de dominação cultural e econômica na cabeça de um
dominado acaba tendo uma força muito grande. Temos uma naturalização da tortura
– tem de bater senão não confessa. É vagabundo, tem de dar porrada. Essa
mentalidade vem da escravidão. O sonho da carteira assinada: a CLT, que é da
década de 1930, traz o reconhecimento de ser registrado, o direito a salário.
Isso vem acompanhado do aceite das pessoas de que é melhor colocar meu filho
para aprender um ofício.
“De 1850 em diante, decreta-se o fim do tráfico, com a Lei Eusébio de
Queiroz. Começa a emergir e revolução industrial e é preciso de braços para
fazer produtos fabris. A Revolução Industrial já corria, mas Portugal se opõe
às reformas propostas pelos ingleses. Fim do tráfico? Fim da escravidão?
Remuneração, fim do latifúndio? Dom Pedro II se abraça com Thomas de Gabineau e
a teoria racial emergente, porque interessa para ele a manutenção do Padroado.
Os interesses econômicos se aproveitam de teoria pseudocientíficas com base
racial. Com os judeus foi a mesma coisa...”
Portugal e
Brasil
“Para entender a questão da ausência de negros nas escolas brasileiras,
não temos de estudar apenas a história da África, mas a história de Portugal. É
na Península Ibérica que está a matriz do país que somos hoje. Em 1551, Lisboa
tinha 100 mil habitantes, 10% eram negros.”
Padroado
“O Padroado [sistema de poder que ali repressão, ideologia, religião]
português sobrevivia em função de três bases – a monocultura; o latifúndio e a
escravidão. O Padroado resistiu na Península Ibérica. Resistiu à Reforma
Protestante. Portugal e Espanha viraram as costas para a modernidade. Não lhes
interessava o que estava acontecendo na Inglaterra, Alemanha, França e Itália.
Preferiram manter uma cultura parasitária. Foram 400 anos de Padroado, tempo o
bastante para ser encarado como algo natural.”
“Um filho do senhor de engenho vai para Coimbra, estudar. Outro está na
Casa Grande – vai herdar as propriedades, ser o sinhozinho; o terceiro vai para
o sacerdócio. O padroado português inventou categorias. Só duas delas precisam
ler e escrever, o que não inclui os proprietários e a grande massa de índios e
negros. Com o tempo, até conhecemos negros letrados – Luiz Gama, José do
Patrocínio, Machado de Assis, Castro Alves, os irmãos Rebouças. Mas não
conhecemos nenhum negro que pertença à categoria dos proprietários”.
Imigrantes
“Com a vinda de dom João VI para o Brasil, em 1808, surgiu uma baixa
classe média, que começou a exercer ofícios urbanos, o que inclui cuidar dos
escravos. Eram os capitães do mato, origem da nossa polícia. É um assunto
delicado. O Brasil todo começa aí. O Wilson Martins que me desculpe, mas os
imigrantes não inventaram o país.”
“Debret descreve o Rio de janeiro como uma sociedade negra, porque só
tinha trabalhadores negros. Mas não quiseram dar oportunidade à massa
trabalhadora que estava aqui, que conhecia o trabalho rural. Havia marceneiros,
artífices, todos negros, escravos ou libertos. Havia razões raciais, mas também
razões econômicas. A teoria do branqueamento foi uma desmobilização de um
movimento nascente de trabalhadores brasileiros...”
Capitalismo
“Nós pagamos o preço. O capitalismo foi tardio, o iluminismo não entrou
em Portugal. Dom João VI lutou para manter a monocultura e escravidão. Portugal
foi um país tão atrasado até o final da ditadura de Salazar. Tinha latifúndios
enormes. Seguimos o modelo. A grande questão de 1964, qual foi? A posse da
terra... O golpe não foi por causa do Jango, mas por causa da reforma
agrária...”
As escolas
“Antes de dom Pedro II não havia preocupação com escolas no Brasil. A
Constituição de 1824 falava do direito à educação, mas não houve organização
nenhuma. Enquanto isso, na Europa, com exceção de Portugal e Espanha, já
entrava forte a ideia de alfabetização para todos. Aqui não dava para fazer
isso: constitucionalmente, os negros, indígenas, pobres e libertos não eram
cidadãos.”
“As escolas profissionais eram para operários especializados, para
técnicos agrícolas, professores, mas não era uma garantia de acesso à
universidade. Repete-se nesse momento a dicotomia do padroado. A classe média
incipiente começa a se mostrar no momento da urbanização, e se decide dar a ela
o direito à escola profissional. Mas o sistema de oportunidade é menor para os
negros. Essa desigualdade se torna um capital cultural, como mostra Bourdieu.
Foi igual com os índios – eram levados para exposições internacionais, mas eram
invisíveis como pessoas.”
A cultura
“O nobre, o digno, o pensador, o cidadão... esses pensam, dirigem e
comandam. O servo e o bárbaro usam as mãos, fazem trabalho manual, que é algo
maldito, um estigma, tanto quanto a cor. Veja só a história do futebol... o
futebol só pegou na nobreza inglesa por uma razão: era jogado com os pés.”
“O Ozeil Moura [cônsul do Senegal] é um homem absolutamente negro. Ele
conta que quando ia para a Europa, nos voos da Air France, as aeromoças vinham
falar com ele em francês. Pedia que falassem em português. Depois ouvia
desculpas. A naturalização é isso: para estar naquele voo, deveria ser de outra
nacionalidade. Ou ser um jogador de futebol. Um negro pode ser também um
artista, mas nunca um galã. Quem sabe um comediante: Chocolate, Grande Otelo,
Mansueto...“
“Orlando Silva, Orlando Dias, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga eram
negros do rádio. Tevê não. Tínhamos grandes cantoras negras – Edith Veiga,
Ângela Maria, Ademilde Fonseca. Aracy de Almeida fez sucesso na tela, mas como
jurada caricata do Sílvio Santos.”
“Sabe quem começou o rock no Brasil? O Baby Santiago... Carlos Gonzaga
foi o rei do rock balada. Cantava todas as versões do Paul Anka e do Neil
Sedaka. Você conhece algum ídolo negro na Jovem Guarda? As meninas do Trio
Esperança não tinham o jeitão do Djalma Santos, né...”
“Você leu a matéria com a filha do Toninho Cerezo, a Lea T.? Este país está cada vez mais civilizado...”, elogia o médico Nizan Pereira Almeida, 65 anos, antes de dar entrevista para a Gazeta do Povo. “Mudar de assunto” é sua especialidade, para deleite de quem o ouve. Quando fala, “Nizan”, como o doutor é chamado, é capaz de levar os espectadores a um parque de diversões temático, incluindo o loop da montanha-russa. Não fosse um patologista seria o autor de um guia dos curiosos.
Em duas
horas de conversa, prestou tributo à coragem da transexual Lea, mas também fez
referências ao craque Djalma Santos, às cantoras negras do Trio Esperança, aos
dois Pedros da nossa monarquia, a Maurício de Nassau, sempre com uma cascata de
sinapses. De lambujem, discorreu sobre as concepções raciais do pensador
francês Arthur de Gobineau, para citar um dos autores dos quais fala sempre com
intimidade dos amigos de bar, mesmo quando desafetos.
À primeira
vista, parece mero exercício de dispersão – “sou um pouco exibido”, brinca o
homenzarrão de 1,95 metro, legítimo “tímido espalhafatoso” –, não fosse Nizan,
sobretudo, um atleta. Na juventude, jogava basquete. Na maturidade, faz
ginástica para responder a uma pergunta tão simples quanto embaraçosa: por que
os negros não foram incluídos no sistema de ensino brasileiro por ocasião do 13
de maio de 1888?
O assunto é
sua obsessão por boas décadas – talvez desde o dia em que se percebeu o único
negro nas escolas onde andou. Nutriu-a no exercício de sua vida pública, à
frente das secretarias da Saúde ou na pasta de Assuntos Estratégicos no último
governo Requião. Juntou material o bastante. Nos últimos anos, decidiu, como se
diz, “sistematizar” tanta conversa numa tese de doutorado, defendida há pouco
no programa de Educação da Universidade Católica do Paraná.
O título é
longo, como de praxe aos espartilhos acadêmicos: A construção da invisibilidade
e da exclusão da população negra nas práticas e políticas educacionais no
Brasil. Tem orientação do sociólogo Lindomar Wessler Bonetti. E promete trazer
sabor a uma discussão fadada a voos rasantes. Para levá-la mais a fundo, Nizan
fez uso de um conceito de efeito inigualável – “a naturalização”. Não tem mistério.
Pode ser entendido por uma criança de 12 anos: a população negra ficou à margem
porque o país achou que ficar de fora, para esse grupo, era o normal. Eis o
ponto.
Num trabalho
estafante – mas traduzido de forma palatável – o “cestinha” Nizan Pereira tira
proveito do método dos chamados “livros de interesse geral”. Leva o leitor nas
águas mornas – falando-lhe de gregos, romanos e seus escravos “coisificados”,
verdadeiras mercadorias. Depois, oferece águas escaldantes. Se para defender a
tese o pesquisador tinha uma pergunta, ao terminá-la deixa dezenas de outras.
Impossível não se questionar, por exemplo, por que, por tanto tempo, os
professores não se incomodaram com a ausência de alunos negros nas fileiras.
Teria faltado mérito a tanta gente?
Um dos feitos
mais notáveis da pesquisa de Pereira está em não se render ao “vitimismo”. Ao
responder por que a exclusão dos negros passou a ser vista como algo natural,
recorre ao estigma racial, como não poderia deixar de fazer, mas também ao
cipoal da economia brasileira da virada do século 20. A colocação dos negros à
margem se tornou uma estratégia de escala industrial. Era preciso não
reconhecê-los, o que incluía não lhes garantir a escola, e o pior, com o
respaldo da lei, na contramão da universalidade do ensino público, então em
curso na Europa.
Para quem
nutre a imagem algo romântica dos negros forros, de pé no chão e sem rumo – a
exemplo do que fazem acreditar os retratos de Marc Ferrez – Nizan oferece
alguns fatos até então condenados aos rodapés dos livros de História. Lembra as
revoltas negras do século 18 – dos Búzios, dos Alfaiates, das Argolinhas –, e
que os negros desempenhavam ofícios das mais diversas naturezas, logo,
participavam da sociedade, uma sociedade que lhes negou o passaporte à vida comum.
A dedução é
instantânea – os escravos e ex-escravos não foram privados apenas da escola,
mas também do mundo do trabalho, privilégio que passa a ser reservado aos
imigrantes. Os negros eram muitos para serem pagos, como mandava a nova ordem
do capitalismo mundial. A solução foi estender a eles o olhar reservado aos
índios, pouco elogiosos, usando do etnocentrismo e da ciência para justificar a
exclusão.
De tão
repetidas, essas máximas viraram verdade na cabeça de muitos brasileiros e na
estrutura do país. “Quando o próprio negro começa a repetir o que se diz sobre
ele, ah, é quando se chega à perfeição”, pontua o pesquisador, sobre a vitória
do sistema de exclusão: virou algo natural até para quem devia combatê-la.
Doutor Nizan explica.
Lista
negra
População
negra teve inserção demorada e difícil no sistema nacional de ensino
1. Leis – A Constituição de 1824 ditava que a escola era um direito de todos os
cidadãos, o que não incluía os escravos. A cidadania se estendia aos
portugueses, filhos de portugueses e libertos. Os direitos dos “livres”,
contudo, estavam condicionados a ter rendimentos, posses e “a soma de
oitocentos mil réis.” Na ocasião da constituinte, José Bonifácio de Andrade e
Silva já apontava a escravidão como sistema arcaico, antecipando a orfandade
que em breve o estado lhes reservaria, preferindo reconhecer direitos aos
imigrantes.
2. Escolas – Entre a Constituição de 1824 e a de 1891 perdurou um sistema
escolar que reservava aulas domiciliares aos ricos; escolas públicas aos pobres
e livres nascidos no Brasil, ou cursos em seminários católicos, para poucos.
Nascidos na África não tinham direito a frequentar esses espaços. No Rio de
Janeiro, por exemplo, proibia-se ir à escola os que tivessem doença contagiosa
e os negros, “ainda que libertos”.
3. Ofícios – Na Primeira República, a preocupação passa a ser transformar os
“ingênuos” – como eram chamados os beneficiados pela Lei do Ventre Livre – em
“trabalhadores úteis”, evitando que replicassem a indolência dos adultos
pobres. A educação utilitária e a aprendizagem de ofícios se torna destino
“natural” dos negros e desvalidos, formando uma mentalidade sobre esse grupo.
4. Voto – Analfabetos na maioria, aos negros também era subtraído o
direito de votar. Era um paradoxo: até 1888 eles tinham sido privados do
direito de estudar. Definidos como “cegos intelectuais”, sofrem novo baque ao
não poderem se organizar por meio do voto, o que retarda mais uma vez a
inserção no sistema educacional.
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