Via Gazeta do Povo
Lucia Cavalcante de Albuquerque Williams, professora de Psicologia da
UFSCar e coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção de Violência
(Laprev)
JOANA NEITSCH
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Compreender o direito de maneira isolada é um erro que não se pode mais
cometer. A importância das contribuições das outras áreas do conhecimento já é
reconhecida e desempenha um papel indispensável para uma efetiva prestação
jurisdicional. É o que defende a primeira entrevistada do caderno Justiça &
Direito que não é do campo jurídico, a psicóloga Lucia Cavalcante de
Albuquerque Williams, referência acadêmica na área de psicologia forense. A
professora esteve em Curitiba para participar do 1.º Congresso Iberoamericano
de Psicologia Forense e conversou com a reportagem sobre o papel da psicologia
no campo do Direito.
Como os
operadores do direito, de um modo geral, recebem a intervenção da psicologia
nos processos em que é preciso essa parceria? Como a senhora avalia esse
trabalho conjunto?
Ficha técnica
• Naturalidade: São Paulo (SP)
• Currículo: pós-doutora em Psicologia Educacional
pela Universidade de Toronto (Canadá), doutora em Psicologia Experimental pela
USP, mestre pela Universidade de Manitoba (Canadá), graduada em Psicologia pela
PUC-SP. Professora do Curso de Psicologia da UFSCar desde 1998. Coordenadora do
Laboratório de Análise e Prevenção de Violência
• Juristas que admira: José Antônio Daltoé Cezar,
desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
• O que está lendo: Foco, de Daniel Goleman
• Nas horas vagas: brinca com o neto de 8 meses e
ouve jazz
Depende dos operadores do direito e dos psicólogos. Se eles [operadores
do Direito] tiverem a sorte de estar trabalhando com psicólogos bastante
preparados, capacitados, que acompanham a literatura científica da psicologia,
são pessoas que trazem uma contribuição gigantesca para a área forense. E,
também, se nós tivermos juízes que acompanham a área da psicologia e estão
sempre nos nossos congressos, essas pessoas têm uma abertura muito especial
para entender que são áreas que se complementam, que o conhecimento é muito
complexo. Uma disciplina única não vai dar conta, e a psicologia tem tido uma
contribuição muito grande para a área do direito.
Quais
seriam os principais pontos sobre ética na psicologia forense que precisam ser
enfatizados ou tratados com mais atenção?
Existe um desconhecimento em geral do que faz o psicólogo judiciário ou
forense e como ele é diferente do psicólogo clínico ou psicólogo educacional,
que são as áreas mais tradicionais da psicologia. A psicologia que dá suporte
ao direito é muito mais recente. Então, as pessoas tendem a confundir um
psicólogo clínico, que é o mais comum, com a questão de que ele tem a
confidencialidade. Para ele é muito grave romper esse sigilo. No entanto, se
ele está trabalhando para o Judiciário, o cliente dele é o Estado, ele está
trabalhando para dar apoio ao sistema, então as regras clínicas não são
exatamente as mesmas. A confidencialidade e o sigilo vão ser sempre muito
relativos. Outra implicação é saber que as leis do país estão acima das leis do
código de ética profissional. Um exemplo está no Estatuto da Criança e do
Adolescente, quando diz que, se o profissional de saúde fica sabendo de uma
violação de direito de uma criança, ele terá de cumprir a lei e comunicar a
suspeita para os órgãos responsáveis. Então, não existe esse conhecimento ainda
de muitos profissionais da psicologia. Do ponto de vista forense, não existem
normas específicas para o psicólogo forense, pelo menos no Código de Ética da
Psicologia Brasileira.
Mas
precisaria haver alguma regulação específica?
Precisa, porque é um ramo totalmente diferente da psicologia e você não
pode transpor a prática clínica para o sistema forense. As decisões são muito
complexas, as consequências dos erros são muito graves e são públicas. O
psicólogo às vezes se coloca numa posição de vulnerabilidade, ele pode ser
processado se dá um laudo inadequado, então há todo um cuidado muito grande e
um preparo. E a questão central da ética é você ter competência. O psicólogo
forense precisa se manter atualizado, acompanhando o grande volume de
conhecimento que a psicologia atual tem na pesquisa.
Hoje o
Judiciário brasileiro tem grandes defasagens estruturais. Como é a realidade do
psicólogo que trabalha junto ao Poder Judiciário?
Eu não trabalho no Judiciário, sou uma pesquisadora, mas do contato que
tenho, é uma realidade distante do ideal. Os psicólogos e assistentes sociais
estão sobrecarregados, têm uma demanda muito grande e nós temos ainda pouca
especialidade. Por exemplo, o ideal, como é feito em outros países, seria haver
profissionais especializados em trabalhar apenas com criança, apenas com
questões de abuso sexual. Mas, aqui no Brasil, as pessoas acabam fazendo de
tudo um pouco, é tudo muito recente ainda, temos muito trabalho pela frente.
É preciso
haver leis que deem mais segurança para que o profissional possa atuar?
Geralmente, a resposta do Brasil para muitos problemas é legislar. Mas,
se a gente conseguisse investir mais em educação, talvez fosse melhor. O
bullying, por exemplo, causa muito mal para a saúde da criança e depois ele vai
causar mal para a saúde do adulto muitas vezes. Há pessoas com problema de
autoestima muito grave, com problemas de depressão, às vezes tentativa de
suicídio. Quando você vai ver o histórico, começou lá atrás. No Laboratório de
Análise e Prevenção de Violência (Laprev), nós temos pesquisa sobre os efeitos
a longo prazo do bullying. Precisamos ter formas alternativas de investimento e
prevenção que não apenas legislar. Legislar é importante, mas tem de haver
outros esforços.
De que
maneira a psicologia pode contribuir para o direito?
A psicologia como ciência tem estudado alguns fenômenos do
desenvolvimento da pessoa, do desenvolvimento infantil, problemas de memória e,
com isso, tem verificado que há várias maneiras de entrevistar uma criança,
quando ela tem, por exemplo, a suspeita de ter sido vítima de um crime ou de um
delito como o abuso sexual. O que a psicologia tem feito? Tem desenvolvido
protocolos que são baseados no conhecimento científico experimental, testados
em laboratório, e esses protocolos auxiliam o profissional, seja ele psicólogo,
policial ou assistente social, a fazer uma entrevista com menor erro.
Que tipo
de erro?
É muito fácil você sugestionar, você faz uma pergunta inapropriada para
a criança, a criança pode dizer sim apenas concordando com o que você sugeriu.
Então nós estamos trabalhando na validação do protocolo MICHD, que é o
protocolo forense para entrevistar crianças suspeitas de abuso sexual mais
pesquisado no mundo. Esse protocolo já está traduzido para português do Brasil,
está disponível na internet e as pessoas interessadas podem procurar a
capacitação.
Além de
sugestionar, a senhora poderia destacar alguns erros mais comuns cometidos
pelos profissionais que precisam entrevistar crianças?
Bom, quanto mais específica for a pergunta, maior é a probabilidade de
erro. O ideal são perguntas bem abertas. Segundo o protocolo, não se começa
conversando direto com a criança. Primeiro você tem de fazer todo um preparo,
um relacionamento para a criança ficar à vontade, para confiar em você. Depois
você ensina para a criança a diferença entre falsidade e verdade, mostra a
importância, faz isso ludicamente. Só depois é que você entra nas perguntas
substantivas, que são o motivo pelo qual a entrevista está acontecendo. E você
começa com uma pergunta aberta: “me conta tudo sobre isso”, “me conta por que
você veio aqui” e vai explorando a narrativa da criança com perguntas abertas.
As perguntas específicas devem ser feitas só no final.
Colaborou
Paulo Ferracioli, especial para a Gazeta do Povo
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